ANTROPOLOGIA DO TEATRO: A ARTE E A EDUCAÇÃO
Bim de Verdier, mestre em Artes Cênicas
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC
Como ensinar a atuar?
Numa sociedade contemporânea, o pedagogo de teatro se pergunta como é possível ensinar a arte teatral, conhecimentos tradicionalmente transmitidos de mestre para aprendiz, muitas vezes começando cedo na infância. Hoje a arte teatral é freqüentemente ensinada em instituições acadêmicas e o aprendiz de teatro se transformou em estudante universitário. Mas, além de ser um saber teórico, a arte também é um saber prático, artesanal, muitas vezes de caráter tácito. Como poderia o ensino de teatro ser inserido no contexto acadêmico sem perder suas qualidades específicas? (...)
Quando se fala em teatro, pensa-se freqüentemente em prédios com palco, textos dramáticos rebuscados, ingressos caros e glamour. Num sentido mais amplo da palavra, somente são necessários o público, o ator e a representação de uma história através de um processo mimético e de gestos. Na sua Poética, Aristóteles escreveu tanto sobre a importância do teatro para a formação da cidadania numa democracia, quanto sobre os componentes fundamentais supracitados (ARISTÓTELES, 1990). Além desses aspectos terem sido abordados num contexto filosófico há dois milênios e meio atrás, eles são também sabedoria corrente, muitas vezes não formalizada, do Teatro Popular no mundo inteiro.
O teatro consiste em forma e conteúdo, mas a relação entre os dois não é simples.
“A forma serve ao conteúdo”, uma suposição muitas vezes escutada, banaliza demais quando na verdade é uma relação dialética. O conteúdo se cria na forma, nasce a partir de técnicas e essas se transformam a partir das mensagens, das histórias, dos códigos. Também é dialética a relação entre o teatro e a sociedade. O teatro espelha a realidade onde está inserido, adapta-se e se modifica; passa obstáculos e limites com criatividade e serve como instrumento transformador. O teatro está intrinsecamente ligado ao processo de democratização. A própria palavra teatro vem do grego e significa “local de se ver”, um espaço público onde se podem revelar e discutir as questões essenciais da vida e preparar a pessoa para desenvolver reflexões necessárias para exercer seus direitos e deveres de cidadão. A ligação entre o que significa ser humano e a prática teatral é tão profunda que a própria palavra pessoa vem de “persona”, cujo significado é a máscara grega usada pelo ator. (ROSENBERG, 2001).
Os exemplos de como o teatro reflete os processos democráticos numa sociedade e de como pode ser usado como instrumento neste processo são inúmeros. A formação do ator depende da tradição teatral específica e da relação entre o teatro e a sociedade. Tem, por isso, um caráter diferente em sociedades diferentes. A construção do espaço cênico, o que é apresentado no palco, o que é e o que não é permitido representar, quais são as obras dramáticas, como são pagas as despesas de produção, quem está na platéia, qual é o status social do ator são exemplos de fatores que variam de um contexto sócio-cultural para outro. Assim, não foi por acaso que o teatro grego brotou a partir das festas dionisíacas simultaneamente com a democracia e que precisava de um coro para dar voz aos pensamentos do povo; que os contadores de história do Senegal, os “griots”, eram da casta mais baixa; que a corte francesa ficou provocada a ponto de proibir os atores da Commedia dell’Arte a falar, criando assim a pantomima francesa; que Federico Garcia Lorca foi assassinado pelos fascistas espanhóis, que Bertolt Brecht preferiu o teatro épico; que Augusto Boal foi exilado na época da ditadura.
Implícito em cada história sobre o atual está a sua própria prolongação. No teatro, quando se comenta a realidade, pode-se sempre inserir uma visão sobre o futuro. Nesse sentido, teatro não é somente uma arte mimética, mas pode ser também uma arte que constrói novas realidades.
Quando se fala em teatro, pensa-se freqüentemente em prédios com palco, textos dramáticos rebuscados, ingressos caros e glamour. Num sentido mais amplo da palavra, somente são necessários o público, o ator e a representação de uma história através de um processo mimético e de gestos. Na sua Poética, Aristóteles escreveu tanto sobre a importância do teatro para a formação da cidadania numa democracia, quanto sobre os componentes fundamentais supracitados (ARISTÓTELES, 1990). Além desses aspectos terem sido abordados num contexto filosófico há dois milênios e meio atrás, eles são também sabedoria corrente, muitas vezes não formalizada, do Teatro Popular no mundo inteiro.
O teatro consiste em forma e conteúdo, mas a relação entre os dois não é simples.
“A forma serve ao conteúdo”, uma suposição muitas vezes escutada, banaliza demais quando na verdade é uma relação dialética. O conteúdo se cria na forma, nasce a partir de técnicas e essas se transformam a partir das mensagens, das histórias, dos códigos. Também é dialética a relação entre o teatro e a sociedade. O teatro espelha a realidade onde está inserido, adapta-se e se modifica; passa obstáculos e limites com criatividade e serve como instrumento transformador. O teatro está intrinsecamente ligado ao processo de democratização. A própria palavra teatro vem do grego e significa “local de se ver”, um espaço público onde se podem revelar e discutir as questões essenciais da vida e preparar a pessoa para desenvolver reflexões necessárias para exercer seus direitos e deveres de cidadão. A ligação entre o que significa ser humano e a prática teatral é tão profunda que a própria palavra pessoa vem de “persona”, cujo significado é a máscara grega usada pelo ator. (ROSENBERG, 2001).
Os exemplos de como o teatro reflete os processos democráticos numa sociedade e de como pode ser usado como instrumento neste processo são inúmeros. A formação do ator depende da tradição teatral específica e da relação entre o teatro e a sociedade. Tem, por isso, um caráter diferente em sociedades diferentes. A construção do espaço cênico, o que é apresentado no palco, o que é e o que não é permitido representar, quais são as obras dramáticas, como são pagas as despesas de produção, quem está na platéia, qual é o status social do ator são exemplos de fatores que variam de um contexto sócio-cultural para outro. Assim, não foi por acaso que o teatro grego brotou a partir das festas dionisíacas simultaneamente com a democracia e que precisava de um coro para dar voz aos pensamentos do povo; que os contadores de história do Senegal, os “griots”, eram da casta mais baixa; que a corte francesa ficou provocada a ponto de proibir os atores da Commedia dell’Arte a falar, criando assim a pantomima francesa; que Federico Garcia Lorca foi assassinado pelos fascistas espanhóis, que Bertolt Brecht preferiu o teatro épico; que Augusto Boal foi exilado na época da ditadura.
Implícito em cada história sobre o atual está a sua própria prolongação. No teatro, quando se comenta a realidade, pode-se sempre inserir uma visão sobre o futuro. Nesse sentido, teatro não é somente uma arte mimética, mas pode ser também uma arte que constrói novas realidades.
“O mundo é um palco,
e todos os homens e mulheres, meros atores.
Têm suas entradas e suas saídas;
Cada pessoa na sua vida representa vários papéis.”
Jacques (o alter ego do autor) em Como Quiser, de William Shakespeare
(...) Segundo o diretor mundialmente conhecido, Peter Brook, nesse sentido o teatro tem vantagens comparado a outras artes que utilizam atores, por exemplo, televisão e filme. O público, diz ele, “vai ao teatro por uma única razão: viver certa experiência, que só acontece no momento da representação”. (BROOK, 2002). Um espetáculo teatral é um encontro no momento, várias pessoas juntas acompanhando e se emocionando pelos mesmos acontecimentos. Não devemos subvalorizar isto na nossa era de tantos encontros e desencontros virtuais e eletrônicos, pois a necessidade primordial do ser humano é o contato com outras pessoas.
Teatro é uma linguagem universal. Aqui usamos o conceito antropológico de universal, isto é, o ser humano em todas as culturas desenvolveu tradições miméticas de reunir membros de uma comunidade para contar e construir sua história, suas crenças e aspirações e de refletir sobre elas. (...)
O conhecimento teatral tem em grande parte um caráter tácito. Uma vez aprendido está na memória corporal, mas é difícil explicitar. Não deve ser, entretanto, confundido com o conceito do não-falável de Wittgenstein (1979). É possível tanto conhecer como explicar, mas para isso é necessário ultrapassar as convenções acadêmicas e usar métodos participativos e métodos da própria arte cênica. No mundo acadêmico, para combater a tão falada “crise da ciência” convém abrir espaços para arte. Segundo Aristóteles, o homem precisa tanto do conhecimento teórico (episteme) quanto o prático (techne) para alcançar a sabedoria maior; para que possa, a partir do episteme, agir com ética na realidade (fronesis). (ARISTÓTELES, 1967).
O ator é seu próprio instrumento e como tal necessita ser flexível a ponto de poder se adaptar a várias técnicas. (...) O ator necessita de uma formação que o possibilite a emprestar seu corpo e sua voz aos mais variados estilos e histórias imagináveis. (...)
(...) Um curso de Artes Cênicas que desenvolve relações com a comunidade local tem várias vantagens: um espaço para fazer pesquisas e desenvolver projetos, uma fonte para procurar temas a serem trabalhados e fácil acesso a um público teste. Em troca, a comunidade teria acesso às varias produções teatrais. As produções são organizadas pedagogicamente, de forma que cada produção (momento do curso) oferece novos desafios e possibilita a aquisição de novos conhecimentos. Um exemplo disso é um curso de teatro infantil no qual os estudantes fazem visitas a escolas, estudam psicologia infantil, literatura e textos dramáticos infantis, a história deste teatro e, finalmente, criam, produzem e apresentam um espetáculo. As crianças das escolas visitadas estão necessariamente entre o público e ajudam no processo de avaliação.
(...) A sugestão aqui é de elaborar exercícios a partir dos princípios universais e não de seguir um estilo específico. (...)
O psicólogo russo Lev Semenovic Vygotsky enfatizou que a arte dramática e a imaginação em geral sempre se baseiam nas experiências de vida da pessoa. Essas experiências são transformadas, deturpadas e montadas de uma forma fantástica para se tornarem ficção, mas sempre com fundamento na realidade. A atividade criativa é, portanto, circular. Ela se origina em elementos retirados do cotidiano da pessoa, do seu meio, processam-se dentro dela e voltam para a realidade com nova força transformadora. Nessa atividade, a capacidade emotiva e a cognitiva são simultaneamente necessárias. Cada processo criativo origina-se num desejo, numa necessidade e a partir de uma imagem. As obras de arte não são somente fantásticas, são novas realidades, são imaginação cristalizada. (VYGOTSKY, 1995).
Aumentando as experiências, aumenta a capacidade de criar mais e melhor na prática teatral. Podem-se destingir três tipos de comportamentos: os diários, os extradiários e os virtuosos. Para o ator os movimentos extradiários são de maior interesse. Aprendidos vão ficar na memória corporal, assim como o montar a cavalo molda para sempre o corpo e os movimentos do vaqueiro; assim como a bailarina sempre leva consigo a experiência corporal de alongamento e equilíbrio. É dessa forma que os princípios da Antropologia de Teatro vão ser incorporados no ator que treina a partir deles.
Um treinamento físico baseado nesses universais dá ao aluno aprendiz uma vasta experiência corporal de movimentos extradiários, uma base de comportamentos que depois servem de matéria prima na criação teatral, nas improvisações, na interpretação. Um treinamento físico elaborado a partir desses princípios possibilita a aprendizagem de conhecimentos corporais, tácitos. Exercitando movimentos novos, criam-se conexões neurológicas novas. Esse tipo de aprendizagem de processo é mais duradouro que outros tipos de aprendizagem.
O uso da memória corporal tem semelhanças com o método sugerido por Stanislavski, no qual o ator usa a memória afetiva na criação do personagem. Uma sereia é, segundo Vygotsky, uma junção imaginaria de um rabo de peixe com um corpo de uma mulher. O personagem do vagabundo criado por Charlie Chaplin é também uma composição fictícia de elementos: gestos, movimentos, posições que na realidade normalmente não se combinam.
O treinamento do ator aqui proposto amplia a base de referência de movimentos possíveis, das experiências de comportamentos extradiários e recondiciona o corpo. Durante a vida, uma pessoa normalmente vai aperfeiçoando certos tipos de comportamentos corporais e excluindo outros, eliminando assim possibilidades movimentais e gestuais. Por exemplo, tanto os movimentos suaves, flutuantes, ditos femininos, quanto os fortes, bruscos, ditos masculinos, precisam ser treinados por estudantes de ambos os sexos. O teatro é uma arte transvestida.
Ensinar arte não é somente transmitir técnicas. É também facilitar a ultrapassagem dos obstáculos que limitam a criatividade e procurar métodos para superar barreiras, medos, tabus, convenções e estereótipos.
Teatro é uma linguagem universal. Aqui usamos o conceito antropológico de universal, isto é, o ser humano em todas as culturas desenvolveu tradições miméticas de reunir membros de uma comunidade para contar e construir sua história, suas crenças e aspirações e de refletir sobre elas. (...)
O conhecimento teatral tem em grande parte um caráter tácito. Uma vez aprendido está na memória corporal, mas é difícil explicitar. Não deve ser, entretanto, confundido com o conceito do não-falável de Wittgenstein (1979). É possível tanto conhecer como explicar, mas para isso é necessário ultrapassar as convenções acadêmicas e usar métodos participativos e métodos da própria arte cênica. No mundo acadêmico, para combater a tão falada “crise da ciência” convém abrir espaços para arte. Segundo Aristóteles, o homem precisa tanto do conhecimento teórico (episteme) quanto o prático (techne) para alcançar a sabedoria maior; para que possa, a partir do episteme, agir com ética na realidade (fronesis). (ARISTÓTELES, 1967).
O ator é seu próprio instrumento e como tal necessita ser flexível a ponto de poder se adaptar a várias técnicas. (...) O ator necessita de uma formação que o possibilite a emprestar seu corpo e sua voz aos mais variados estilos e histórias imagináveis. (...)
(...) Um curso de Artes Cênicas que desenvolve relações com a comunidade local tem várias vantagens: um espaço para fazer pesquisas e desenvolver projetos, uma fonte para procurar temas a serem trabalhados e fácil acesso a um público teste. Em troca, a comunidade teria acesso às varias produções teatrais. As produções são organizadas pedagogicamente, de forma que cada produção (momento do curso) oferece novos desafios e possibilita a aquisição de novos conhecimentos. Um exemplo disso é um curso de teatro infantil no qual os estudantes fazem visitas a escolas, estudam psicologia infantil, literatura e textos dramáticos infantis, a história deste teatro e, finalmente, criam, produzem e apresentam um espetáculo. As crianças das escolas visitadas estão necessariamente entre o público e ajudam no processo de avaliação.
(...) A sugestão aqui é de elaborar exercícios a partir dos princípios universais e não de seguir um estilo específico. (...)
O psicólogo russo Lev Semenovic Vygotsky enfatizou que a arte dramática e a imaginação em geral sempre se baseiam nas experiências de vida da pessoa. Essas experiências são transformadas, deturpadas e montadas de uma forma fantástica para se tornarem ficção, mas sempre com fundamento na realidade. A atividade criativa é, portanto, circular. Ela se origina em elementos retirados do cotidiano da pessoa, do seu meio, processam-se dentro dela e voltam para a realidade com nova força transformadora. Nessa atividade, a capacidade emotiva e a cognitiva são simultaneamente necessárias. Cada processo criativo origina-se num desejo, numa necessidade e a partir de uma imagem. As obras de arte não são somente fantásticas, são novas realidades, são imaginação cristalizada. (VYGOTSKY, 1995).
Aumentando as experiências, aumenta a capacidade de criar mais e melhor na prática teatral. Podem-se destingir três tipos de comportamentos: os diários, os extradiários e os virtuosos. Para o ator os movimentos extradiários são de maior interesse. Aprendidos vão ficar na memória corporal, assim como o montar a cavalo molda para sempre o corpo e os movimentos do vaqueiro; assim como a bailarina sempre leva consigo a experiência corporal de alongamento e equilíbrio. É dessa forma que os princípios da Antropologia de Teatro vão ser incorporados no ator que treina a partir deles.
Um treinamento físico baseado nesses universais dá ao aluno aprendiz uma vasta experiência corporal de movimentos extradiários, uma base de comportamentos que depois servem de matéria prima na criação teatral, nas improvisações, na interpretação. Um treinamento físico elaborado a partir desses princípios possibilita a aprendizagem de conhecimentos corporais, tácitos. Exercitando movimentos novos, criam-se conexões neurológicas novas. Esse tipo de aprendizagem de processo é mais duradouro que outros tipos de aprendizagem.
O uso da memória corporal tem semelhanças com o método sugerido por Stanislavski, no qual o ator usa a memória afetiva na criação do personagem. Uma sereia é, segundo Vygotsky, uma junção imaginaria de um rabo de peixe com um corpo de uma mulher. O personagem do vagabundo criado por Charlie Chaplin é também uma composição fictícia de elementos: gestos, movimentos, posições que na realidade normalmente não se combinam.
O treinamento do ator aqui proposto amplia a base de referência de movimentos possíveis, das experiências de comportamentos extradiários e recondiciona o corpo. Durante a vida, uma pessoa normalmente vai aperfeiçoando certos tipos de comportamentos corporais e excluindo outros, eliminando assim possibilidades movimentais e gestuais. Por exemplo, tanto os movimentos suaves, flutuantes, ditos femininos, quanto os fortes, bruscos, ditos masculinos, precisam ser treinados por estudantes de ambos os sexos. O teatro é uma arte transvestida.
Ensinar arte não é somente transmitir técnicas. É também facilitar a ultrapassagem dos obstáculos que limitam a criatividade e procurar métodos para superar barreiras, medos, tabus, convenções e estereótipos.
Fonte: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/art3_14.pdf
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