A CRIATURA – Está certo. Vou estudar. Vou fazer tudo o que o senhor mandar. Depois serei atriz?
EU – Ainda bem que pergunta. É claro que não será atriz, ainda. Ouvir, olhar e sentir de verdade, não é tudo. Precisa fazer tudo isso centenas de modos. Suponha que esteja representando. O pano sobe e seu primeiro problema é ouvir o ruído de um carro que parte. Você terá que realizá-lo de tal forma que as mil pessoas sentadas no teatro naquele momento, cada qual concentrada em algum interesse particular – um na Bolsa de Valores, outro em preocupações domésticas, um terceiro na política, um quarto em um jantar ou na linda garota da poltrona vizinha – de tal forma que saibam e sintam imediatamente que a concentração deles é menos importante que a sua, embora você esteja se concentrando apenas no ruído da partida de um carro imaginário. Eles precisam sentir que não têm o direito de pensar na Bolsa em presença de seu carro imaginário! Que você é mais poderosa que eles, que, no momento, você é a pessoa mais importante do mundo e que ninguém se atreva a perturbá-Ia. Ninguém se atreve a perturbar um pintor entregue a seu trabalho, e é culpa do próprio ator se permite que o público interfira em sua criação. Se todos os atores possuíssem a concentração e o conhecimento de que estou falando, isso jamais aconteceria.
A CRIATURA – Mas do que é que o ator necessita para conseguir isso?
EU – Talento e técnica. A educação do ator consiste em três partes. A primeira é a educação do corpo, de todo o complexo físico, de cada músculo e cada fibra. Como diretor posso dirigir muito bem um ator que tenha um desenvolvimento de corpo completo.
A CRIATURA – Quanto tempo deve gastar nisso um ator jovem?
EU – Uma hora e meia diárias nos seguintes exercícios: ginástica, ginástica rítmica, dança clássica e interpretativa, esgrima, todo o tipo de exercícios respiratórios e exercícios de impostação de voz, dicção, canto, pantomima, maquilagem. Uma hora e meia por dia, durante dois anos, e depois uma prática constante daquilo que tenha aprendido farão dele um ator que agrade ver. A segunda parte desta educação é intelectual, cultural. Só se pode discutir Shakespeare, Molière, Goethe e Calderon com um ator culto que saiba o que estes homens representam e o que se fez nos teatros do mundo para montar suas peças. Necessito de um ator que conheça literatura mundial e que possa perceber a diferença entre Romantismo Francês e Alemão. Necessito de um ator que conheça história da pintura, da escultura e da música, que possa sempre ter em mente, ao menos de um modo aproximado, o estilo de cada período e a individualidade de qualquer grande pintor. Necessito de um ator que tenha uma idéia bastante clara da psicologia do movimento, da psicanálise, da expressão da emoção e da lógica do sentimento. Necessito de um ator que conheça algo da anatomia do corpo humano, bem como das grandes obras de escultura. Todo esse conhecimento é necessário porque o ator entra em contato com tais coisas e tem de trabalhar com elas no palco. Este treino intelectual formaria um ator capaz de desempenhar uma variedade de papéis. A terceira espécie de educação, cujo início eu lhe mostrei hoje, é a educação e o adestramento da alma – o fator mais importante da ação dramática. Não pode existir ator sem alma suficientemente desenvolvida para estar apta a realizar, à primeira ordem da vontade, toda e qualquer ação e mudança estipuladas. Em outros termos, o ator deve dispor de uma alma capaz de viver, de ponta a ponta, qualquer situação exigida pelo autor. Não há grande intérprete sem urna alma assim. Infelizmente ela só é adquirida por meio de longo e duro labor, à custa de muito tempo e experiência, e através de séries contínuas de papéis experimentais. O trabalho, para tanto, consiste no desenvolvimento das seguintes faculdades: completo domínio de todos os cinco sentidos em várias situações imagináveis, desenvolvimento da memória do sentimento, memória da inspiração ou penetração, memórias da imaginação e, por último, memória visual.
A CRIATURA – Mas eu nunca ouvi falar de todas essas coisas.
EU – No entanto, elas são quase tão simples quanto “amaldiçoar os céus”. O desenvolvimento da fé na imaginação; o desenvolvimento da própria imaginação; o desenvolvimento da ingenuidade; o desenvolvimento da observação; o desenvolvimento da força de vontade; o desenvolvimento da capacidade de infundir variedade à expressão emotiva; o desenvolvimento do senso de humor e do senso trágico. E isto não é tudo.
A CRIATURA – Será possível?
EU – Só resta uma coisa que não pode ser desenvolvida, mas que deve estar presente. É o talento. (A criatura suspira e cai em profunda meditação. Eu também permaneço sentado, em silêncio.)
A CRIATURA – O senhor fez com que o teatro pareça algo muito grande, muito importante, muito...
EU - Sim, para mim o teatro é um grande mistério, um mistério no qual se acham maravilhosamente unidos os dois fenômenos eternos, o sonho da Perfeição e o sonho do Eterno. Somente a um teatro assim vale a pena a gente dar a vida. (Levanto-me, a Criatura me fita com olhos desconsolados. Entendo o que esses olhos exprimem.)
BOLESLAVSKI, Richard. A arte do ator. São Paulo: Perspectiva, 1992.